Um sinal misterioso e a lenda dos cosmonautas perdidos
Do SOS de 28 de novembro de 1960 aos áudios dos irmãos Judica-Cordiglia, uma investigação revisita boatos de cosmonautas perdidos e os desmentidos que marcaram a Guerra Fria.
Na noite de 28 de novembro de 1960, dois italianos varreram as frequências usadas por satélites da União Soviética. De repente, um padrão repetitivo rompeu o silêncio. A frequência caía, o comprimento de onda crescia e, portanto, o efeito Doppler indicava afastamento da Terra. Decodificado, o sinal em morse trouxe três letras: SOS.
O episódio voltou a inflamar um enigma: haveria astronautas à deriva? A famosa imagem de Bruce McCandless livre no vazio fascina, mas assusta. Contudo, seu voo foi calculado, e ele retornou em segurança. Ainda assim, rumores insistem, como se o espaço escondesse nomes e destinos apagados.
Nesse debate, rótulos importam pouco. Astronauta costuma designar americanos e outros; cosmonauta, russos e soviéticos; e taikonautas são os chineses. Porém, o pano de fundo decisivo foi a Guerra Fria, quando propaganda e segredo caminharam ao lado da ciência.
Guerra Fria: pioneirismo, feitos e tragédias
Enquanto os Estados Unidos chegaram à Lua em 1969, os soviéticos ganharam a largada em várias frentes. Além disso, o cosmos virou vitrine geopolítica. Cada sucesso rendia manchetes, e cada fracasso alimentava censuras e versões oficiais convenientes.
- 1) Sputnik 1, primeiro objeto em órbita.
- 2) Yuri Gagarin, primeiro homem no espaço.
- 3) Valentina Tereshkova, primeira mulher no espaço.
- 4) Laika, a cadela que voou e não voltou.
No entanto, vieram lutos. Em 1967, Vladimir Komarov, na Soyuz 1, morreu após falha do paraquedas na reentrada. Em 1971, a Soyuz-11 despressurizou e três cosmonautas perderam a vida. Consequentemente, Moscou passou a divulgar missões só após a decolagem, mitigando danos políticos.
O segredo cobriu ainda a catástrofe de Nedelin, em 1960: um míssil explodiu no preparo do lançamento. Estimativas variam de 60 a 150 mortos. Em 1968, o próprio Yuri Gagarin morreu num acidente aéreo de causas nunca totalmente esclarecidas. Já Valentin Bondarenko faleceu nos anos 60, após incêndio numa câmara de testes; detalhes só emergiram 25 anos depois.
Personagens apagados e rumores persistentes
O caso Grigory Nelyubov
Fotos oficiais apresentaram a primeira turma de cosmonautas. Depois, uma imagem idêntica surgiu, mas com um rosto sumido: Grigory Nelyubov. Autoridades atribuíram sua eliminação ao mau comportamento e à bebida. Segundo o governo, ele foi transferido para a Sibéria e morreu atropelado por um trem.
Relato de 1959 e os “quatro” que nunca foram
Em 1959, um jornal americano citou fontes na então Tchecoslováquia e falou de quatro tentativas soviéticas fracassadas, incluindo uma mulher. Porém, investigação posterior apontou tratar-se de paraquedistas de grande altitude. Assim, ninguém havia ido ao espaço nesses episódios.
Vladimir Ilyushin e a queda na China
Pouco antes do voo de Gagarin, Moscou informou que Vladimir Ilyushin sofrera grave acidente de carro. Entretanto, tabloides britânicos sustentaram um voo espacial mal sucedido, com queda na China. Especialistas vasculharam bibliografia e concluíram: tudo indicava boato plantado.
Trollagens, manequins e manchetes de impacto
Em 1962, um porta-voz da Defesa Aérea Americana afirmou que a URSS teria colocado um “caixão” em órbita, num suposto “cemitério do céu”. Logo, apurações ligadas à biografia de Gagarin indicaram outra explicação: o manequim Ivan Ivanovich, usado para testar rádios com gravações humanas.
Em 1968, a nave Zond-5 orbitou a Lua sem tripulação humana, levando plantas, ovinhos de mosca e duas tartarugas. Entretanto, cosmonautas em terra soltaram um áudio pré-gravado, simulando aproximação da superfície. O trote circulou e chegou ao presidente dos Estados Unidos, inflamando a disputa simbólica.
Anos depois, o artista espanhol Juan Fontcuberta exibiu, em vários países, o fictício cosmonauta Ivan Istochnikov. O sobrenome significa “fonte coberta”, um jogo com seu próprio nome. Além disso, as fotos usavam seu rosto. Mesmo assim, veículos publicaram a lenda como fato.
Os irmãos Judica-Cordiglia em foco
Os italianos Giovanni e Achille Judica-Cordiglia montaram, no terraço, antenas e receptores. O documentário Space Hackers, disponível no YouTube, narra a aventura com locução em inglês, entrevistas em italiano e legendas em holandês. Depois, eles captaram sinais que mudaram suas vidas.
Primeiro, gravaram o Sputnik 1. Em seguida, registraram o que disseram ser batimentos da cadela Laika, no Sputnik 2. Em 1960, ouviram o SOS. Já em 1961, captaram batimentos acelerados e respiração ofegante. Dois dias depois, a URSS reconheceu ter colocado em órbita uma nave de 12 metros e 7 toneladas, não tripulada, que incendiou.
Os irmãos reforçaram o equipamento e divulgaram o áudio mais perturbador: a voz feminina pedindo socorro. O registro ganhou fama mundial. Entretanto, logo surgiram questionamentos técnicos, linguísticos e operacionais que fragilizaram a narrativa da “cosmonauta” anônima.
Dúvidas técnicas e indícios de encenação
Primeiro, nenhuma outra estação — inclusive dos Estados Unidos — relatou interceptação semelhante no auge da Guerra Fria. Além disso, a comunicação não seguiu protocolos: faltaram identificação inicial e linguagem técnica. Assim, o suposto procedimento não convenceu especialistas.
Segundo, durante a reentrada ocorre o “apagão” de rádio, causado por camada de ar ionizado em torno da cápsula. Desse modo, transmissões se tornam inviáveis por minutos. Os italianos poderiam alegar gravação anterior, porém restaram lacunas sobre onde a cápsula teria caído.
Terceiro, o russo do áudio carregava sotaque de não nativo. E há mais: a irmã dos Judica-Cordiglia fala russo e disse ter aprendido para traduzir sinais. Logo, críticos levantaram a hipótese de que ela poderia ter dublado a transmissão. Não houve investigação formal conclusiva.
Essas dúvidas contaminaram todo o acervo de registros do terraço italiano. Em síntese, material interessante para debate não se converteu em evidência verificável. Ademais, o contexto de propaganda e contrainformação da época sempre embaralhou fronteiras entre fato, boato e performance.
O que aprendemos com o enigma
Se existiu um caso impecavelmente encoberto, ele segue fora do alcance público. Entretanto, o conjunto de histórias de “cosmonautas perdidos” aponta, com alta probabilidade, para mal-entendidos, exageros e invenções. Por fim, a ciência segue melhor servida pelo escrutínio cético.
O SOS de 28 de novembro de 1960 permanece como símbolo de uma era em que antenas, manchetes e rivalidades orbitavam lado a lado. Ainda assim, as conquistas — e as tragédias documentadas — de 1960 a 1971 dizem mais do que qualquer lenda.